A capacidade de criar mundos e aprimorar a comunicação levou o ser humano ao “universal não totalizante” do ciberespaço.
“O segundo dilúvio não terá fim. Não há nenhum fundo sólido sob o oceano das informações. Devemos aceitá-lo como nossa nova condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flutuar, talvez a navegar. Quando Noé, ou seja, cada um de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção diferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer transmitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das águas.”
Pierre Lévy
O filósofo e sociólogo, Pierre Lévy, começa seu livro intitulado “Cibercultura” comparando o ciberespaço com o dilúvio bíblico de Noé. Aliás, é comum comparar o universo virtual e a Internet com a fluidez líquida da água. Talvez seja o legado dos ensinamentos de Bauman. Porém, o escritor francês possui uma linha de raciocínio um pouco mais otimista perante as mazelas da tecnologia.
O termo “ciberespaço” – usado pela primeira vez por pelo escritor norte-americano americano William Gibson – traz uma pista desse novo universo tecnológico criado pelo ser humano e estudado por Lévy. Mas antes de compreender suas características é preciso entender os motivos que ocasionaram o seu surgimento.
Em diversos momentos, a História registra a antiga capacidade humana de imaginar, criar e, principalmente, quebrar barreiras de espaço e de tempo. A escrita é o exemplo mais comum dessa capacidade de registrar. Aliado a esse sentido, nossos ancestrais cultuavam seres superiores como personificações de objetivos a serem alcançados: poder, fama, força, inteligência. Em outras palavras, o ser humano sempre buscou superar a própria humanidade através de registros documentais que ultrapassaram a capacidade de memória e processamento do cérebro. O ciberespaço é a mais nova das técnicas de virtualização de informações vindas do mundo que chamamos de “real”. Pierre Lévy defende esse ponto de vista: “Não se trata de forma alguma de uma utopia tecnológica, mas do aprofundamento de um antigo ideal de emancipação e de exaltação do humano que se apoia nas disponibilidades técnicas de nossos dias”.
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O que é o virtual e qual é a sua importância para a humanidade?
Desde sempre a espécie humana cria universos correlacionados com o mundo físico. Primeiro, criamos um espaço/tempo capaz de representar os objetos e as situações do mundo material. Assim, as primeiras representações simbólicas surgiram com grunhidos, gestos e marcas. Depois surgiram as línguas e a escrita.
Agora, o virtual é a nova técnica. Qualquer espaço ou momento que não for, respectivamente, o espaço físico e o presente pode ser considerado virtual, segundo Pierre Lévy. Dessa forma, a nossa imaginação é uma “realidade virtual”, pois não deixa de ser verdadeira apenas por existir somente dentro do pensamento. O autor ainda explica sobre os cuidados que devem ser tomados quando unimos esses dois termos: “Em geral acredita-se que uma coisa deva ser ou real ou virtual, que ela não pode, portanto, possuir as duas qualidades ao mesmo tempo. Contudo, a rigor, em filosofia o virtual não se opõe ao real mas sim ao atual: virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes da realidade”.
Somos ótimos criadores de mundos e isso nos diferencia como espécie. O mito da caverna é um exemplo desgastado sobre essa capacidade humana. Diferentes áreas da filosofia e das ciências exatas trazem essa questão com os seus pontos de vista. Mas, extraindo a essência de todas elas, podemos notar que esse desejo de existir algo além do material é comum e motivador. Tentamos brincar de Deus há milênios e sempre chegamos a um patamar que achamos ser o mais alto. Daqui alguns anos, com a evolução tecnológica e moral, iremos perceber que o próprio ciberespaço não é o limite. Pierre Lévy gosta de ilustrar essa relação entre o ser humano e as técnicas chamando os cientistas da informática de engenheiros: “O engenheiro de mundos surge, então, como o grande artista do século XXI. Ele provê as virtualidades, arquiteta os espaços de comunicação, organiza os equipamentos coletivos da cognição e da memória, estrutura a interação sensório-motora com o universo dos dados”.
Afinal, o que é o ciberespaço?
Os universos virtuais criados pela humanidade estão relacionados, até então, com a comunicação entre indivíduos e entre comunidades (no sentido mais original do termo). O ciberespaço é o resultado da tentativa de criar um canal universal, que atingisse todos os continentes. Porém, diferente da escrita e o seu caráter totalizante, o ciberespaço é “a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva”, graças à “interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”, ressalta o estudioso sobre comunicação, Pierre Lévy.
Você já deve ter ouvido falar que computadores são grandes calculadoras. Mas já parou para pensar quão expressiva e importante é essa analogia para a criação do ciberespaço? Esse não é apenas um espaço virtual, pois precisa manter seus recursos e suas técnicas materiais para existir. Porém, diferente de um livro ou de uma biblioteca, não é um espaço que pode ser definido geograficamente ou descrito com adjetivos exatos. Segundo Lévy, o ciberespaço é criado por uma rede de máquinas, mas o computador “não é mais um centro, e sim um nó, um terminal, um componente da rede universal calculante. Suas funções pulverizadas infiltram cada elemento do tecnocosmos. No limite, há apenas um único computador, mas é impossível traçar seus limites, definir seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: o ciberespaço em si”.
Interconexão e a criação de comunidades virtuais
“O ciberespaço surge como a ferramenta de organização de comunidades de todos os tipos e de todos os tamanhos em coletivos inteligentes, mas também como o instrumento que permite aos coletivos inteligentes articularem-se entre si.”
Pierre Lévy
Essa ida e vinda de sentidos e informações entre as diversas “comunidades” faz do ciberespaço um ambiente “universal não totalizante”. Ou seja, como explica o autor do livro “Cibercultura”, a potencialidade do ciberespaço em ligar pessoas e grupos independente do fator geográfico faz com que ele seja interconectado e “universal”. Porém, diferente das religiões antigas e das crenças científicas totalizantes, o ciberespaço não tem como característica ditar ou impor nenhuma ideologia ou nenhum padrão.
Como isso é possível? Devido à capacidade de gerar comunicações em tempo real e sem limitações espaciais: “Conectadas ao universo, as comunidades virtuais constroem e dissolvem constantemente suas micrototalidades dinâmicas, emergente, imersas, derivando entre as correntes turbilhonantes do novo dilúvio”.
O saber e a inteligência coletiva
“Com esse novo suporte de informação e de comunicação emergem gêneros de conhecimento inusitados, critérios de avaliação inéditos para orientar o saber, novos atores na produção e tratamento dos conhecimentos. (…) O nervo do ciberespaço não é o consumo de informações ou de serviços interativos, mas a participação em um processo social de inteligência coletiva.”
Pierre Lévy
Assim como os livros e os textos escritos servem como documentos e marcas de uma determinada fonte de saber, o ciberespaço também atua como um grande arquivo hipertextual. Por não ser totalizante, ele atinge e é atingido por diversos níveis e tipos de sabedorias, fazendo com que a memória coletiva fique registrada.
Caráter humanizante da tecnologia e do virtual
Assim como a Inteligência Artificial, o ciberespaço e a cibercultura também favorecem o nosso lado humano. Sobre esse aspecto, Pierre Lévy lembra que somos seres em eterna evolução rumo à humanidade: “Nossa espécie faz crescer em paralelo sua estranheza em relação a si mesma e a sua potência. Ao complexificar e intensificar suas relações, ao encontrar novas formas de linguagem e de comunicação, ao multiplicar seus meios técnicos, ela se torna ainda mais humana”.
O ser humano busca evoluir seus limites físicos. As máquinas são prolongamentos das nossas potencialidades como espécie. O ciberespaço, ambiente virtual de capacidade ilimitada, levou este movimento histórico ao extremo. Essa tecnologia é humanizante e libertadora: “Eis o ciberespaço, a pululação [multiplicação rápida e abundante] de suas comunidades, a ramificação entrelaçada de suas obras, como se toda a memória dos homens se desdobrasse no instante: um imenso ato de inteligência coletiva sincrônica, convergindo para o presente, clarão silencioso, divergente, explodindo como uma ramificação de neurônios”, conclui Pierre Lévy.